Germinar na Bio Brazil Fair

terça-feira, 2 de março de 2010

Olhar Escrito – novo blog de Adriana Gragnani e Sérgio Mudado

 
Adriana Gragnani, do blog http://www.asgavetas.blogspot.com/, paulistana da gema, e Sérgio Mudado, mineiro de Belo Horizonte, estão com um novo blog na praça – http://www.olharescrito.blogspot.com/
Eles se conheceram em uma sala de bate-papo na internet, em 1998. Participaram como colaboradores da primeira revista literária produzida no espaço O Caixote http://www.ocaixote.com.br/  – um baú de ossos de “coisas já publicadas e sem nenhum critério editorial de escolha a não ser o afeto, a amizade, o tempo e os ossos do ofício”.
Abaixo um conto de Adriana para a revista O Caixote.

Um cataplar d´água
Tive notícias de que nas justas quatro horas e cincoenta e cinco minutos do dia de ontem, involuntariamente os olhos de Chico se abriram. Foi um sabiá na janela que piava a ida da noite. Era de conhecimento que Chico havia anunciado aos pássaros: piem, piem, mas não passem antes das cinco!
Nosso amigo levantou com vontade de dar murros ao vento, com vontade de cataplar na poça para fazer chuá.
Depois das passadas de pássaros, em miudezas de tempo, me disse, ouviu o galo, outro galo, e finalmente o cachorro Plá da sua vizinha, a Dona Aninha.
Dona Aninha é pessoa muito boa, mas devo confessar, de alguma estranhice também. Aprecia usar de minuciosas sílabas para apelidar tudo que vive na terra. Plá é o cachorro, a gata é Fli. Ela mesma já disse que não se chama Aninha, é só Nhá. E me chama de Nan! Chico, então! Chico é Bir, o Bir que sonha em cataplar poças d´água.
Bir, estranhado pelo canto por demasiado cedo, enfurecido já ia arremessar seu sapato pela janela. Todo genioso, ele, desde quando infantil ainda.
Me disse o Bir que recuou, covardou quando sentiu um aroma que chegava de manso pela janela. Sossegou o pito, torceu a vontade de esmurrar o vento e saiu, cataplando a poça d’água de fronte à sua casa, lá existente desde o penúltimo verão.
Ele disse ter ouvido: “É o Bir!!! É o Bir!!!”, vindo da casa de Dona Nhá, de onde vinha, também, o cheiro do café acabado de ser torrado.
Ele me contou que se sentiu esfumaçado e sem vontade. Não quis tomar o café. Sentou-se onde eu o encontrei às sete horas da noite. Bir estava sentado na cadeira embaixo da jabuticabeira.
Passou o dia inteiro apostando corrida com sementes da fruta. E me disse que cataplou muitas delas na poça d’água, podendo-se considerar um vencedor!
Foi assim que encontrei Bir.
“Que os raios de luar o iluminem e protejam. Se assim não for, quem por nós olhará?” Saudei-o assim para que me olhasse sem pasmo.
Fui embora pensando... mania de fazer chuá o Chico sempre teve.
Desde menino quando queria enfiar-se em rios e córregos.
Depois inventou de desenhar em muros da cidade usando sua parte mais pudenta. Os desenhos, assim bem ligeiros, desapareciam com o calor. Chico não devotava atenção e seguia, desimportado.
Adiantou na idade, avançou e na mocidade imaginou entrar na Marinha. Mas Ermelindo noticiou barbaridades de rigor e momentos medidos. Desistiu, mudou de direção.
Sossegou o facho quando conheceu Vandelana. Fazia recusa de conselhos, sempre afastado com a namorada. Só dizia que construíam barcos e que eram azuis, que tinham cores de água. A fábrica de barcos afundou com o fim do amor.
Mas a vocação de chuá continuou.
Ocasião houve, até, muito distante a ocorrência, que se ofereceu ao pároco para ajudar nos santos serviços. Durou pouco o ajutório. Durou até o dia que o encontraram a coletar água da chuva com a pia batismal. Foi um alvoroço! O povo se dividiu! Uns queriam a pia como fonte na praça do coreto, outros que voltasse ao buraco que restou aberto no chão da sacristia.
Para resolver o embate e trazer calma à cidade, organizou, Chico, um torneio de engolir botão de roupa sem beber água. Quem conseguisse engolir três botões de formato de pérola – aqueles que enfeitaram um dia o vestido de sua falecida mãe, Mélia, no seu casamento – escolheria o lugar da pia.
Chegado o dia, Chico não encontrou os botões. Estavam guardados numa meia de algodão, cinza, muito velha. Um rato deve ter comido a ponta por onde escapuliram. Emburrou, o Chico. Não marcou novo torneio. Birrento, birrento, birrento, gritava o povo, birrento, o Chico!
Magoou-se, então, com a multidão. Isso Dona Aninha conta. Foi ela convocada para ser juíza da competição. Daí nasceu o Bir, o Chico Bir que todos conhecem.
Mas esse gosto, a vontade de cataplatamento de poças d’água, que deixa Mané, seu mano, preocupado, ninguém sabe. De onde vem essa vontade? É de longe que ela vem?
Me aflito em pensar que Chico Bir possa perder a lua de rumo; ficar assim quase amuado como a vaca Ló quando seu último bezerro se foi em brejo para nunca mais voltar.
Conheço desde tempos o Bir, e para mim sempre foi mesmo diferente. Na passada da última lua cheia, todo o céu bem varrido – só de luz que ficou o firmamento! – fomos remar no rio. Chico pôs o pé no bote e avisou que iria dormir, não queria ver os bichos na margem, prontos a comer a água e tudo o mais que nela navegasse. Bobo, ele! Não eram bichos, era a mata brilhosa com o brilho roubado da lua, enfeitando seus galhos e ramagens com a pintura do luar.
Naquele balouço gostoso das águas, de pôr em manso os sentimentos, Chico acordou agitado, dizendo estar com um desconforto que se pregou na cachola, afastando os sonhos. Queria estar na terra, com os pés bem sentidos no chão, de deixar marcas de dedo e calcanhar. Não se atentou para as horas, nem se preocupou com a surucucu dourada. Chico Bir pulou no rio, aparecendo, tempos depois, todo despenteado, agarrado na última nogueira, acenando para mim, com jeito de deboche, Fiquei só no barco, deixei ir pela corrente. Mas quando cheguei no porto, Bir tava já sentado à minha espera.
Me deu um beijo que até foi bom. Os lábios ficaram quentes, incandesceram. Até gostei e queria mais... Mas qual! Virou as costas e se embrenhou no mato.
Só o encontrei duas semanas depois.
Chorava, como muitos, a partida de Lori e toda a turma do circo que comandava. Bir sussurrou para mim: “Eu queria ficar com o circo! Bem lá no picadeiro, olhando para cima, me zonzeando com os gomos da lona”. E depois, me sussurrou: “São doces as ancas da Lori! Eu queria tanto cataplar poças d’água, Nan, ai... como queria!”
Mané, o mano, me disse que choramingo assim só tinha visto quando Chico brigou com Vandelana.
Aí eu chorei, de fazer fungar nariz. Por que o Chico Bir não ia? Porque não. Porque ele só queria fraco, não era forte sua vontade. Também não sabia se era isso, pois o não entendimento era meu. Mas se me desse de ser um pássaro, eu entraria pela janela de Chico Bir, sem pio, sem vento, para pousar meu olhar no seu dormir. Quem sabe um entreaberto de olho, de sono pouco calmo, me revelasse sua alma, me desse o caminho de saber sua vontade de cataplar poças d’água?
Fiquei acabrunhada, por dias, com a tristeza do Chico. Comecei a passear pela cidade, sem querer prosa, folguedo, algazarra de criança... Nem pegar manga me atrevia.
Dona Aninha bem que viu os meus internos sentimentos. Num dia, sentada na cadeira que botava na calçada todas as tardes, me chamou. Estava ela com aquele chapéu de abas largas que encobria um pouco seus olhos, fazendo a imaginação acreditar em mistérios de vida. A bem dizer, era a mais antiga moradora da cidade, a madrinha de gentes e gentes.
“Dona Nhá, sempre firme?”
“Firme, como, Nan? Firme é a árvore que balança no vento e continua em pé. Eu já me sento todas as tardes, minhas pernas descansam dobradas.”
Dona Aninha foi logo dizendo, assim diretamente e sem remendos de caminho, que me achava bastante crescida, me achava uma mulher em ponto de fazer mais que dar beijo corrido. Não entendia, ela, porque não juntava eu o corpo com alguém, tão bom era!
Desconsertei com o jeito do assunto, eu que sempre via a Dona Aninha como anja, sei lá, quase uma estátua de formatação toda completa, como sem andanças novas de idéia, só fazendo o nhenhenhem daquela parte da vida que eu conseguia enxergar, o café, o pão, a reza.
“Dona Aninha, só junto o corpo quando eu amar alguém”, respondi, breve e seca.
“Ora, Nan, vá cataplar poças d’água com o Bir!”
Fiquei de graça escorregada; com cara de ora-veja. Aquilo era conselho de Dona Aninha ou estaria ela rindo de minha querença, de meu sonho? Ah... se Dona Aninha soubesse que tudo que queria naquele instante era saber do cataplatamento de Chico Bir!
“Dona Aninha, sei lá o que seja isso, minhas idéias se perdem no destino do descobrimento.”
“Nan, corra as águas, todas as águas de sua atenção.”
Saí mais abatida... Quais as águas que conheço? As da chuva, do rio, da lágrima, as do poço, da cisterna... Ia andando pensativa e nem vi o Chico Bir na minha frente.
“Ô Nan! Cuidado! Assim você me derruba. Se caio, levo você junto ao chão.”
“Sabe Bir, troquei uns leros com a Dona Aninha. Ela me disse uma coisa que descompreendi, tão sábia ela é e me deixou sem precisão de certeza. Me palavreie umas idéias...”
“Você sabe que desconverso, Nan. Tenho teima em não falar muito.”
“Bir, por que Vandelana sumiu?”
“Nan, conversa mole, a sua.”
“Diga para mim, diga!”
“Ela não queira ver as águas. Me ajudava nos barcos, mas nem um túnel conheci, ela não deixou.”
Pensei comigo que a conversa seria mesmo difícil. Barcos andam sobre as águas, se deixam ver e se guiam pelo visto, de farol, farolete, posição de estrela no céu, por que andar de túnel?
“Bir, não entendi.”
“Deixa pra lá, Nan.”
“Chico, por que você não foi com a Lori?”
“Não interessa!”
“Chico, você me aprecia um tico?”
“Nan, você está como caracol! Toda de cautela e duvidenta!”
“Bir, me vou.”
Andei pra longe, me queria sozinha. Me encontrei na velha nogueira, deitei no chão e finquei as vistas no céu. Ele estava azul clarinho! Parecia o manto pintado da minha Santinha, Ave Maria. Será que ela nunca juntou corpo com alguém? Me dá uma quentura quando penso nisso! Vai descendo descontrolada até estourar no entremeio das pernas. E se passo as mãos no seio, piora tudo, então! Parecia que tava com bicho-de-pé na cachola e alguém... foi Dona Aninha! Foi Dona Aninha que roçou minha cachola! Fui ficando lá mansinha, dormente. Me marolando com a esquisitice da Dona Aninha, deixando o ouvido aberto para o som do rio, sossegando o corpo com a proteção da árvore.
“Nan! Acorda Nan!”
Levei um susto, o céu vermelhara já e Chico Bir me sacudia!
“Ô Bir, adormeci, nem reparei.”
“Nan, me ponho no chão com você, não se levante.”
Eu fiquei, fiquei olhando Bir deitar, olhar para o céu e dizer:
“Esses pássaros passam quando querem.”
“Bir, parece que não gosta de pássaro!”
“Nada, Nan. Gosto, sim. Fico até de alegre quando eles beijam a água para perder a sede.”
“Ah... cataplar sementes na água, pássaro beijar água, não entendo Bir, suas vontades.”
“Nan, é uma querença tão aguda de penetrar pelos túneis, de experimentar líquidos e derramar outros. Cataplafo em poças, mas é simples desejo do corpo que se esvai pelos pés. Me resto não-pleno, sinto até raiva.”
“Você já cataplou um túnel?”
“Tentei, fugiu de mim a vontade, porque só minha ela era.”
“Bir, você é tão mistérios... fico até quebrantada!”
“Nan, você me põe em tempo de querer.”
“Querer... Bir! Como seria bom!”
Bir veio para mim cantarolando – mar de águas, suas águas encobertas pela anágua, mar de águas, nossas águas catapladas em poças d’água...
Fui achando gostoso o canto e me abrindo, minha boca, meus entremeios, minhas pernas, profundos túneis de águas sem fim, quentes fios de rio, porejando pelos corpos... Nem pensava em nada, só de água me sentia.
Beijou-me Bir meus líquidos, minhas águas, explorou todos meus túneis, que nem eu mesma conhecia. Beijei-lhe todo, conheci-lhe suas poças, suas dobras; nem tempo corria ali, nem quando por lá um sabiá parou, bicou de umas aguinhas, piou, se despedindo, já que era chegado o tempo da noite.